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Igreja Matriz de São João Batista (S.João do Piauí) |
São João do Piauí é um município sem
história escrita. Todo mundo sabe que nascemos e nos criamos sob o domínio da
economia gerada e desenvolvida dentro dos currais e nos campos de pastoreio dos
rebanhos bovinos, inicialmente, e depois dos caprinos e ovinos. As histórias
contadas e cantadas pelos vaqueiros fazem parte do nosso folclore, chegadas até
nós pela tradição oral, muitas vezes entoadas pelas amas, embalando as crianças
nas redes de dormir.
Foi assim mesmo, nosso município
apareceu despertado pelo mugido dos bois, que foram confiscados aos padres
jesuítas, com suas fazendas situadas às margens do rio Piauí, que de um e do
outro lado eram constituídas de campinas repletas de capim mimoso, que se
transformava em carne depois de assimilado pelo gado. Não havia cercados para
prender a gadeira, que era criada às soltas, como se fosse nômade. As fazendas
Boqueirão, Fazenda Grande, Canavieira, Espinhos, Salinas, Cachoeira e
Gameleira, nos confins das nossas terras, eram cheias de gado pé duro.
Remédios, vacinas, veterinário para quê? O gado nascia e se criava sadio pelas leis da natureza,
dispensando cuidados técnicos. Seus guias e domadores eram os vaqueiros,
montados em cavalos adestrados.
Nos sertões, sem estradas de
penetração, nas matas habitadas por onças bravias e valentes, como se operou a
ocupação? Como foram desbravadas e ocupadas as terras dos nossos chapadões, sem
rios, sem brejos, nem olhos d’água? Perguntamos agora e pouca gente sabe
responder.
Foi uma espécie de gente denodada e
corajosa, que enfrentava a cobra, o mosquito, a mutuca e a onça preta ou
pintada, armada de espingarda, foice e facão, conduzindo um ferro pequeno,
chamado lega (assim mesmo: “léga”) à procura de maniçobeira nativa, de onde
extraía o precioso e valioso látex, que se transformava em borracha, vendida
para o exterior. Os maniçobeiros embrenhavam-se na mata aos bandos, por medida
de proteção recíproca. Dividiam-se durante o dia, mas de noite juntavam-se no
lugar da dormida, no centro da mata, ao redor de uma fogueira. A onça, que os
espreitava, esbarrava a certa distância com medo dos inimigos mais numerosos;
se avançasse, seria morta.
Os maniçobeiros desbravaram e
ocuparam os lugares mais distantes, não apenas de São João do Piauí, como dos
municípios vizinhos. Instalaram fazendas e povoações que prosperaram à força e
por conta da economia da borracha. As cidades de Simplício Mendes, Canto do
Buriti, Socorro do Piauí, Paes Landim, João Costa, Pedro Laurentino, Nova Santa
Rita e Campo Alegre tiveram por início os barracões dos maniçobeiros, que ali
faziam o ponto de encontro para venda da borracha e relacionamento social nos
fins de semana. Ao fim dos dias de domingo, os
desbravadores voltavam aos centros da chapada, para reiniciar as tarefas na
segunda-feira, com toda precariedade, devido à falta d’água e de mantimentos.
Trabalhavam seminus: sem camisa, com um toco de calça, à guisa de calção. O
banho era tomado apenas ao sair da mata, em m de semana, quando a bebida franca
e a comida farta compensavam os maus tratos da semana, reconfortados pelo gordo
dinheiro que embolsavam.
Foi a comercialização da borracha que
pesou na fixação de nossa feira semanal para o dia de segunda. Os maniçobeiros
entregavam nos barracões, aos sábados, a borracha extraída e preparada durante
a semana, que depois era transportada em jumentos para a cidade. Os tropeiros
levavam todo o dia de domingo na viagem, para vendê-las aos comerciantes na
segunda-feira.
Depois que passou o período da
borracha, várias tentativas já foram feitas para mudar esse dia da feira para o
sábado, mas todas elas frustradas, valendo as raízes da tradição.
Essa economia da borracha foi o
principal incentivo do comércio de São João do Piauí, até o ano de 1950. O
período de maior movimentação foi o da grande guerra mundial, que eclodiu em
1939, quando a Alemanha sustentou uma luta de cinco anos contra o resto do
mundo. Na segunda metade da guerra, o Japão entrou ao lado da Alemanha e ocupou
as terras que produziam borracha na Ásia, condição que deixou os aliados em
muita dificuldade. Então, a salvação estava nos seringais da Amazônia e nos
maniçobais do Piauí.
Organizou-se assim a chamada frente
da produção para abastecer os aliados de borracha, sem a qual a guerra não poderia continuar. Eu
pessoalmente tenho uma recordação muito grande daqueles tempos, porque a firma
comercial do meu pai, da qual eu fazia parte (Pedro Laurentino & Filho) era
a maior produtora de borracha. No último ano da guerra, nós embarcamos 40.000
quilos de maniçoba. O transporte era feito em costas de jumento até Petrolina,
atravessava o rio São Francisco em barcas e seguia de trem até Salvador pela
estrada Leste Brasileiro. Com os mares cheios de submarinos inimigos, não era
aconselhável o transporte marítimo para tão preciosa carga. Para completar a viagem,
entravam em ação os grandes aviões americanos, em voos diretos de Salvador para
Nova York.
Nesse período da borracha não havia
desemprego em nossa terra. Quem não trabalhava nas matas se ocupava nos transportes, nos barracões e nos armazéns dos
comerciantes. Até o jumento era valorizado pelo serviço que prestava. Era uma
paisagem bucólica: a Praça Noé Carvalho vivia cheia de jumentos, descarregando
e carregando borracha e mercadorias, nesse vai-e-vem quotidiano do nosso
comércio, que era o maior da região. Não havia presença do poder público. Tudo
era por conta da iniciativa privada. O estado e o município só apareciam para
cobrar impostos. Também, que beleza: não havia corrupção. Essa palavra só
existia nos dicionários.
Outra interrogação é oportuna por
curiosidade. Se a terra era despovoada, de onde veio essa gente destemida e
decidida prestar tantos e tão relevantes serviços a esta região estranha?
As minas de ouro e outros metais
preciosos constituíram por este Brasil afora forte motivação para as bandeiras, que partiam de São Paulo e
penetravam terras desconhecidas e distantes, Através delas foram povoados muito
territórios dos sertões, onde conviviam os índios e as feras.
No nosso caso, os exploradores da
borracha vieram dos estados vizinhos, especialmente da Bahia e de Pernambuco,
inicialmente, e mais tarde dos municípios de Picos e Paulistana, para citar os
mais próximos.
O município de São João do Piauí, no
início do seu nascimento, recebeu sangue novo, vindo da cidade e do município
de Riacho de Casa Nova, do Estado da Bahia. No último quarto do século XIX,
emigraram pessoas de várias condições sociais, sobretudo do sexo masculino,
atraídas pela notícia do ganho fácil, que proporcionaria melhores condições de
vida. Não há registro na história oral da vinda de casais, nessa aventura de
viajar para terras desconhecidas e distantes. As famílias dificilmente se
arriscam nesse passe meio misterioso. Os solteiros é que se lançam nas
aventuras, arriscando o futuro.
Entre os migrantes destacaram-se alguns
nos diversos ramos de atividades, sendo o mais famoso Honório Francisco dos
Santos, que se casou duas vezes, por motivo de viuvez, e deixou uma prole
numerosa. Foi agraciado com a patente de major da Guarda Nacional e passou a
ser conhecido, dentro e fora do município, por major Honório. Ingressou na
política, elegendo-se Intendente Municipal por dois mandatos, e assumiu de fato
e de direito a chefia do partido dos Carvalho até o ano de 1930, quando foi
destituído e levado ao ostracismo pela vitoriosa revolução de Getúlio Vargas.
Morreu em avançada idade, cego e pobre.
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Residência do Major Honório - Foto Publicada por Honório Filho |
Outro menos ilustre, mas com alguma
notoriedade, foi José Torquato, que se localizou na fazenda Alegre, onde
mantinha grande lavoura, dedicando-se também à extração da borracha de
maniçoba, bem como à criação de gado. Casou uma filha com o promotor, depois
Juiz e mais tarde desembargador Joaquim Vaz da Costa, que ganhou, pelo
conceito, conhecimento e prestigio, o cargo de Prefeito do Município, após a
revolução de 30.
José Martins Estrela veio de visita e
gostou da terra, aqui ficando até morrer. Sua atividade foi o comércio de
tecido e gado. Cresceu tanto e com tamanha rapidez, que se tornou o homem mais
rico da região. Fazia compras na cidade de Salvador e despachava viajantes para
revenda no sul do Piauí e no interior de Goiás, De volta, seus agentes traziam
muitas boiadas, que ele engordava e repassava para outros centros consumidores.
José Martins casou-se com Jesuína
Ferreira de Carvalho, da família mais importante do município, filha de José
Ferreira de Carvalho. Construiu para morar um sobrado, com dois pavimentos, no
alto da Santa Fé, à semelhança dos castelos medievais. Depois da morte do
casal, esse luxuoso edifício ficou inicialmente desocupado e depois abandonado
sem os cuidados necessários. Em 1935 um herdeiro o vendeu por preço irrisório a
Simplício Carvalho, que o demoliu para vender o material a quem interessasse.
José Martins e Jesuína não tiveram filhos, sendo seu rico patrimônio herdado
pelos sobrinhos da mulher.
A terra que constitui o patrimônio do
município de São João do Piauí, onde fica localizada a cidade, foi doada por
ele. No seu testamento, doou para a Diocese do Piauí as terras que compõem a
data Fazenda-Grande, com todos os pertences, inclusive a
sua casa de residência, com a condição de instalar um colégio, destinado à
educação da juventude. O Bispo de Teresina, D. Otaviano, desistiu da dádiva por
falta de condições materiais de cumprir a vontade do testador. O testamento e a
desistência estão registrados no cartório do lº Oficio de São João do Piauí.
Para se ter uma ideia da grandeza do
patrimônio de José Martins Estrela, pertenciam-lhe as datas Fazenda-Grande,
Canavieira e Espinhos, todas povoadas de gado. Essas fazendas pertenceram aos
jesuítas, foram confiscadas pela Coroa Portuguesa e depois arrematadas por ele
ao governo do Brasil.