terça-feira, 24 de junho de 2014

São João Velho X São João Novo


Em 1928 chegou a nossa paróquia, como vigário. o Padre José Maria Leau, procedente da Alsácia Lorena, na França. Entendeu o Padre que a vetusta e feiosa imagem pequenina de São João Batista, que remontava aos tempos da construção da igreja, não condizia com os tempos modernizados. Encomendou então para sua terra outra imagem de São João Batista.

Em 1930, chegada a encomenda, o vigário fez a entronização solene do novo santo, em procissão partida de casa paroquial. Como estávamos na festa de junho, no dia 24 São João Novo desfilou garboso e triunfal, em procissão, pelas ruas do seu reinado: elegante, belo e grande, de braço erguido, falando às multidões da Palestina.

E o santo velho, como reagiu?

Como não era possível a existência de dois reis no mesmo trono, o vigário enterrou a imagem velha em uma sepultura na casa paroquial, como se tivesse falecido. A reação dos devotos foi de protesto. “Mataram nosso santo”, dizia a população mais radicalizada, e o mal-estar foi-se contagiando da cidade ao interior da grande paróquia.

A festa de 1931 foi de tristeza e frustração, com a presença do estrangeiro no altar e na procissão. Não era toda a população que reagia, mas a revolta alcançava grande parte dos devotos, especialmente pelo ato do sepultamento da imagem velha.

Aconteceu que no ano seguinte caiu sobre o nordeste, e muito acentuadamente sobre São João do Piauí, a grande seca de 1932, que deixou nosso município em situação de extrema penúria. Para se avaliar a extensão do flagelo, não se teve notícia de safra alguma de cereais em nossa terra. Enquanto isso, nos municípios vizinhos de Canto do Buriti e de ltaueira, as colheitas foram razoáveis, a tal ponto de abastecer nossa população. Comboios e mais comboios de jumentos e de burros iam e vinham constantemente a essas regiões, em busca de milho, feião, farinha e rapadura. O socorro maior recebido foi do governo do Estado, ocupado pelo Tenente Landri Sales Gonçalves, que instalou frentes de serviços para construir açudes e as duas estradas que nos ligam a São Raimundo Nonato e a Simplício Mendes.

Outro apoio que tivemos foi da lagoa  do Boqueirão, prodigiosamente inesgotável na produção de peixes. As suas margens se constituíram moradias de pessoas carentes, que pescavam dia e noite, parecendo um milagre de multiplicação.

À proporção que a seca ia se prolongando com suas funestas consequências, e a fome aumentando entre a população mais carente, firmava-se a crença de que o flagelo era castigo dos céus, pela maldade praticada contra o velho São João Batista, que contava quase um século de reinado profícuo na paróquia. Simultaneamente surgiu a ideia, que prosperava entre muitos paroquianos, de fazer-se uma reparação para aplacar a ira celestial, a fim de que chuvas abundantes voltassem o mais cedo possível a irrigar nossas terras. Formaram-se, então, duas correntes de opinião: uma a favor de São João novo e outra intransigente em favor do santo velho. A primeira se compunha da elite social da cidade, enquanto a segunda tinha seus adeptos fervorosos entre a massa sofredora, cujo argumento maior era a fome, má conselheira, que fazia o papel da liderança inexistente.

A única proposta que tomava corpo entre os inconformados e agitadores era a reposição de São João Batista velho no seu trono de honra. Sabiam, de antemão, que não contavam com a adesão do Vigário, de modo que só restava o apelo à força. Essas conversas chegavam até a cidade, cujos líderes e autoridades a recebiam inicialmente com desdém, depois com dúvida e finalmente com receio de que tal violência pudesse ocorrer.
 O foco da revolta mais decidida estava na colônia dos negros, que, nessa época, tinham residência compacta nos lugares Riacho do Anselmo, Boqueirão, Sacode e Lagoa de São João. Certo dia, a cidade foi tomada de pânico pela notícia de que os negros, homens e mulheres, se aproximavam da cidade, armados de espingarda, machados, foices, facas e facões, para depor o santo novo e levar São João velho ao trono de que fora espoliado.

Como notícia ruim corre ligeiro, a cidade ficou assustada e justificadamente temerosa. O padre José Leau era temperamentalmente tido como homem corajoso e valente. Pegou o rifle, que encheu de balas, suprindo-se de outras na capanga, e rumou para a igreja a fim de receber os negros.

O Prefeito despachou, tão logo foi possível, uns emissários montados a cavalo, para encontro com os incômodos visitantes e convencê-los a desistir da vinda suicida, porque seriam recebidos a bala. A cidade ficou tomada de angustiante expectativa, pois o quadro delineado na imaginação era preocupante e podia ser desastroso.

Os emissários enviados para parlamentar com os negros em conspiração, depois de percorrer as estradas dadas como trajetória deles, regressaram no mesmo dia, com informação de que não eram verdadeiras as versões que circulavam pela cidade. Embora estivessem solidários com São João velho e aceitassem a seca como represália da sua destituição e sepultamento, não havia planos de reação armada e violenta. Permaneciam em orações ao santo profanado para que perdoasse os inimigos e socorresse os devotos, enviando chuvas para todos.

A seca estava implacável. Além da ausência de alimentos, as águas escasseavam pelo esvaziamento dos açudes. Nessa época não se conheciam as máquinas perfuradoras de poços, de modo que secados os açudes, o apelo seria, como foi, a retirada dos animais para as margens do rio Piauí, ou de alguns riachos, onde a água aflorava pela escavação feita a braços de homem. A situação era tão crítica que não se tinha notícia de açudes com reservatório de água, já no meio do ano.

A perspectiva era de tristeza e angústia pela incerteza de chuvas para tão breve e pela notícia de que as reservas de víveres estocadas em Canto do Buriti e ltaueira chegaram ao fim. Passamos, então, a receber farinha do estado da Bahia, sendo embarcada pela estrada de ferro Leste-Brasileira para Juazeiro, de onde passava para os vagões da via férrea Petrolina — Teresina, até Afrânio, seguindo daí em costados de jumento para São João. Arroz, nem se falava. Só aparecia na mesa dos ricos. A comida dos pobres era feijão com farinha, temperado com sebo ou tutano de vaca, às vezes em mistura com o peixe da lagoa.

Os pessimistas não acreditavam em chuva antes de janeiro do ano seguinte, pois a adversidade faz crescer o desânimo e aumentar a falta de esperança, mas os otimistas, que sempre os há nessas ocasiões, esperavam que viessem cedo as primeiras águas. Os devotos continuavam a rezar e realizar novenas e promessas aos santos de sua preferência, pedindo chuvas em abundância para aliviar o sofrimento generalizado.

O fim dessa história sinistra é que no dia 26 de setembro desse nunca esquecido ano de 1932 caiu uma enorme chuva em todos os recantos do então grande município de São João do Piauí. Não havia pluviômetros por aqui, mas a precipitação pluviométrica foi tamanha que encheu e fez sangrar os maiores açudes da região. O desafogo foi geral e as rezas e novenas continuaram. Agora de agradecimentos aos prestigiosos santos que mandaram a festejada chuva.

A surpreendente chuva do dia 26 de setembro alegrou os ânimos e fez restabelecer a confiança da população, de dias melhores, mas não encerrou a campanha dos devotos de São João velho, que continuaram reivindicando seu retorno ao trono. O padre José Maria Leau, todavia, não se afastava de sua posição, negando-se a ceder às pressões, que considerava fanáticas e supersticiosas.

A causa não era, porém, movida por fanatismo, nem superstição. Tinha origem nos ensinamentos da própria igreja do passado, escorada na crendice popular, que alimentava o culto exagerado das imagens. Ainda hoje se veem pessoas entrar na igreja e visitar os altares de diversos santos, fazendo prece a cada um deles, conforme as suas devoções e necessidades. Pois bem, São João velho é quem representava a população católica do município, que não queria transferir para outra imagem o afeto, a confiança e os sentimentos de um arraigado amor filial. Continuou, por conseguinte, a luta reivindicatória do restabelecimento do seu reinado.

Com a chegada do Padre Jerônimo Marcos (1936), o caso seguiu outra direção. Ao entrar em contato com os paroquianos, inteirou-se das divergências provocadas pela substituição da imagem, deixando-o curioso e interrogativo. Ao viajar pelo interior do extenso município, passou a conhecer melhor os detalhes do episódio e sentiu a radicalização existente. Interessou-se pelo assunto na tentativa de encontrar uma solução que levasse os católicos a ter uma posição unificada. Não lhe interessava, como vigário, e muito menos ao santo padroeiro, a rivalidade e disputa que grassavam entre os dois grupos.

Começou, então, a trabalhar nesse mister até encontrar um denominador comum que conduzisse, como de fato conduziu, ao consenso geral, sem melindres para qualquer das partes. Mandou desenterrar a imagem sepultada, como se fosse uma ressurreição, fez pintá-la de novo, como se fosse de roupa nova, deixou-a em exposição na casa paroquial para receber visitas e declarou que ela seria levada à igreja em altar especial, sem incomodar a imagem do santo novo, que permaneceria, como de fato permaneceu, em seu altar.

Comunicou, ainda, que ficava instituída uma espécie de governo parlamentar. O santo novo com o reinado e o velho como primeiro ministro, com o direito de sair no andor das procissões.

Marcou um dia da próxima festa de junho para a solenidade de rebatizar o santo ressuscitado. Abriu um livro de inscrições para assinatura dos padrinhos e madrinhas, com a contribuição de cinco mil réis.

No dia aprazado, formou-se a enorme procissão de fiéis, todos de vela acesa nas mãos, à frente dos quais a garboso e vitorioso São João Batista velho, que na pia batismal recebeu das mãos do Padre Jerônimo as águas lustrais do santo batismo, entre os cânticos da multidão entusiasmada.

A partir desse ano de 1938, até 1997, durante as procissões da festa de junho, São João Velho percorre as ruas da cidade, carregado em andor pelos seus súditos e fiéis, para contento de todos, em consequência do acordo firmado por Padre Jerônimo, como vigário, e os fiéis.

No ano de 1998, São João Velho foi substituído pelo novo, que desceu do trono, no dia 24 de junho, subiu num carro aberto e desfilou pelas ruas.

Que houve? Quem rompeu o acordo? Consta que foi o Padre Francisco Barroso, chegado recentemente para a função de vigário coadjutor, com porte de primeiro ministro.

Você, prezado leitor, está de acordo com esse desacordo? Eu, da minha parte, faço minha fé em São Joáo Velho, de quem tenho a honra de ser padrinho.

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Notas da Organizadora:
Esse relato resulta da montagem de dois comentários sobre o tema.

Em 1999 o santo velho volta ao andor da procissão.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Golpe de 64 - Os Partidos Políticos



Em seu poder absoluto, resolveu o governo extinguir os partidos políticos, no pressuposto de formar uma base parlamentar a seu lado, pois o PSD e o PTB, que representavam a maioria, constituíam entraves aos seus planos.

Assim, no ano de 1965 foram eliminados da vida pública e partidária todos os partidos existentes, criando-se para substituí-los a Arena e o MDB, duas siglas de Aliança Renovadora Nacional e Movimento Democrático Brasileiro, que formariam o bipartidarismo: governo e oposição. Aconteceu que, na prática, para a Arena foram os políticos aproveitadores, que não sabiam conviver com a oposição. Essa circunstância criou problemas nos estados, por causa das divergências surgidas dentro do próprio partido. Como solução, o governo criou três legendas para cada agremiação, funcionando cada uma como partido próprio, com direito a registrar candidatos. Nestas condições, ocorreram casos de três candidatos a Prefeito, em disputa dentro do mesmo partido, pelas legendas um, dois e três. Aqui em São João do Piauí, registraram duas legendas os grupos dos Paes Landim e do Sabino Paulo, durante toda a ditadura militar.


Já no MDB não havia essa controvérsia, porque os políticos que o procuravam não chegavam a formar mais de uma legenda, toda ela sintonizada na luta contra o governo militar e seus atos de prepotência. Foi presidente nacional do MDB e depois PMDB o Dep. Ulisses Guimarães, até que a morte o levou. No Piauí, o primeiro presidente desse partido foi o Deputado Chagas Rodrigues, até que foi cassado. O segundo fui eu, que passei quatro anos nesse posto em Teresina, enquanto lá tinha minha residência.

Golpe de 64 no Piauí - 3


Para se ter uma ideia da prepotência desse regime chamado revolucionário, mas que era simplesmente discricionário, vou citar alguns exemplos. No Piauí, existia um famoso jornalista, Josípio Lustosa, diretor do jornal “O Estado do Piauí”, o qual fez toda a campanha do candidato Petrônio Portela. Divergiu do governador eleito, por discordar dos atos de sua administração, que considerava desonestos, e por essa razão foi demitido do seu cargo de Fiscal de Rendas, que exercia há quase trinta anos. Esse homem ficou na rua da amargura, passando privações com sua família, socorrido pelos amigos. Eu próprio ajudei-o a atravessar essa vicissitude. Apelou para o Tribunal de Justiça do Estado, que se julgou incompetente. Apelou para Brasília e um dos Ministros do Supremo Tribunal, que foi o Relator do Processo, ficou condoído da situação desse pobre jornalista e concedeu o mandado de reintegração, que não foi cumprido pelo Governador Petrônio Portela. Quando ele renunciou, para se candidatar ao Senado, o Vice João Clímaco de Almeida cumpriu o mandato judicial do Supremo. A conclusão é que Josípio foi reintegrado, recebeu todos os salários atrasados, mas o Ministro do Tribunal, que o salvou, foi aposentado compulsoriamente, por decreto do Presidente da República.

Com medo das urnas, o governo da ditadura militar transferiu para as Assembleias o direito de eleger os governadores. No Rio Grande do Sul, o Dr. Cirne Lima, homem de muita competência, compostura e respeito, se candidatou a Governador e tinha sua eleição assegurada. Como não era do agrado dos militares, às vésperas do pleito dentro da Assembleia, o Presidente da República cassou o mandato de três deputados estaduais, a fim de que o concorrente de Cirne Lima ficasse em maioria e ganhasse a eleição indireta, como de fato ganhou.


Os jornais que se rebelavam contra essa nova ordem execrada e revoltante, sofreram perseguições de todos os gêneros e qualidades. Até papel lhes era negado o direito de comprar.  Assim viveu o Brasil, durante o período dos governos de cinco generais do Exército.

Golpe de 64 no Piauí - 2

O Congresso decretou a vacância do cargo e elegeu o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco para a Presidência da República, encerrando-se o período de democracia constitucional no Brasil. O Presidente exercia ao mesmo tempo os três poderes da República. Cassava os mandatos dos parlamentares, governadores e juízes, suspendia os direitos políticos, por 10 anos, demitia funcionários estáveis, deportava para o exterior seus adversários políticos, parecendo que tínhamos retornado aos tempos horrorosos da idade média. Quando um deputado ou senador protestava do alto dos seus direitos, recebia como resposta a cassação do mandato. Quem mais sofreu injustiça foi a nossa juventude. Rapazes e moças, tão inexperientes como corajosos, que protestavam contra tantas perseguições, iam esbarrar nas prisões, onde eram torturados e martirizados até a morte. Outros fugiam para países mais próximos ou mais distantes, para ficar longe de tantas atrocidades. Só a UDN, ansiosa de mando, estava satisfeita, enquanto as vozes de protestos partidários saíam apenas do PSD e do PTB ou outros partidos menores.

A característica dominante no chamado governo da Revolução era o completo e total desrespeito à Constituição e às leis do país. As perseguições contra os adversários do regime de então eram constantes, tanto no cenário nacional como nos estados. As maiores lideranças políticas do PTB e do PSD tiveram os mandatos cassados e suspensos os direitos políticos, sem qualquer processo ou investigação. Corria tudo por ato arbitrário da vontade do Presidente da República, sem direito a apelo à justiça.


No Piauí a guarnição federal pediu aos deputados que cassassem o mandato do deputado José Alexandre, irmão do ex-governador e então deputado Chagas Rodrigues. Numa Assembleia de 32 deputados, a única voz discordante foi a do Dr. Celso Barros, pela sensibilidade dos seus princípios jurídicos (*). A consequência é que seu nome foi incluído no projeto e cassado igualmente, por votação unânime de toda a Assembleia. O sentimento de covardia era dominante entre os políticos. Ouviam-se vozes de protestos na Câmara e no Senado da República, mas a reação vinha logo dos militares, através de ato do Presidente, que cassava e suspendia por 10 anos os diretos políticos do deputado ou senador que tinha a ousadia de se rebelar. Nesse número dos cassados, entrou o único deputado federal do Piauí que se mantinha fiel a seus princípios políticos, Chagas Rodrigues, representante da Legenda do PTB.

(*) Nota: em 1964 Constantino não era Deputado, em 1962 ele havia disputado  o cargo de governador com Petrônio Portela.

Golpe de 64 no Piauí - 1



Cada dia se complicava mais a situação de João Goulart no governo da República. Oficialmente, seus partidos no Congresso eram o PTB e o PSD, mas a UDN penetrava muito em palácio e tirava proveito, sem retorno eleitoral, Aqui no Piauí, o Governador Petrônio era publicamente o seu representante, para tirar todas as vantagens. O Presidente vivia empolgado com as causas trabalhistas, de que eram porta-vozes os sindicatos de todas as classes e categorias. Essa postura irritava muito os militares, sobretudo a oficialidade, mas os assessores governamentais fomentavam os sargentos, numa luta de classe, reagindo dentro dos quartéis. Não precisava ser bom observador, para saber que o fomento à indisciplina era um erro de graves consequências. Na defesa de suas prerrogativas constitucionais, João Goulart apelava para as populações civis, prometendo realizar reformas de base, que seriam uma revolução dentro da escala social. Dessa campanha se aproveitaram os adversários, muitos deles em convivência dentro do palácio, para ligar as propostas governamentais com as do comunismo russo e cubano.

Numa dessas viagens, já às vésperas do golpe, em um almoço oferecido ao Presidente, nos salões do Jockey Club, em Teresina, presentes o secretario e os altos escalões udenistas, o Governador Petrônio fez protestos  da maior solidariedade a João Goulart, afirmando que o Piauí marcharia armado a seu lado, contra os adversários do regime


Era esse o clima político e popular do país, depois que entrou o ano de 1964. Qualquer dia, tropas estariam se confrontando, segundo as previsões dos analistas políticos. A 29 de março de 1964, o General Mourão Filho levantou seu regimento no interior de Minas Gerais e marchou para Brasília. A seguir, de todos os recantos do Brasil, o Ministro da Guerra recebia mensagem de solidariedade aos insurrectos. O Governo fez em vão as primeiras tentativas de preparar reações, mas não encontrou apoio em parte alguma, não restando outra alternativa para João Goulart, senão fugir para o Uruguai no dia 1° de abril, sem passar o cargo a seu substituto legal. Somente três governadores ficaram fiéis ao governo deposto: o do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Paraíba. O do Piauí pediu perdão aos militares, agarrando-se com os oficiais de suas relações.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Década de 30: Dr. Vaz da Costa


Dr. Joaquim Vaz da Costa, Promotor Público e depois Juiz de Direito da Comarca.

Sendo nomeado Desembargador em 1928, indo morar Teresina, o Dr. Vaz da Costa transferiu para lá suas atividades políticas. Ligado ao Governador Matias Olímpio, integrou-se à Aliança Liberal, que fazia a campanha de Getúlio Vargas a Presidente da República.

Perdida a eleição, Vaz da Costa juntou-se aos conspiradores que pregavam a revolução armada. Em outubro de 1930, ele foi pessoalmente, alta madrugada, chefiando um grupo armado, ao palácio de Karnak depor o governador[1]. Bem sucedido, empossou no cargo o Vice- Governador Humberto de Area Leão, Comandante da Marinha de Guerra, levando o governador deposto para o quartel do 25 BC, onde o manteve preso. O Piauí foi o primeiro estado que fez explodir a revolução. Deu o grito para ao resto do país, que seguiu seu exemplo. O Desembargador Vaz da Costa ficou envaidecido com os aplausos recebidos pelo sucesso do golpe, pois estava numa evidência extraordinária.

Não demorou muitos meses para se desentender com o novo governador e entrou em outra empreitada. Juntando seus simpatizantes e seguidores, aplicou novo golpe, depondo e prendendo o governador, e entregou o cargo ao Capitão Lemos Cunha, que estava no comando da Guarnição Federal. O Desembargador ficou endeusado na Capital. Eu estudava lá nessa época. Só se falava nele, na sua audácia, valentia, coragem e prestígio dentro da revolução.

Nova briga do Desembargador e a bagunça se instalou no palácio do governo, porque o candidato à substituição era ele mesmo, mas não tinha a aprovação do comando revolucionário, que no nordeste era exercido pelo tenente Juarez Távora. O Presidente da República nomeia para Interventor o tenente Landri Sales. A paz não dura muito tempo, o cabo Amador levanta o quartel da policia, vai de surpresa ao Karnak e prende o Tenente Landri, que fica de início submisso, mas fogo encontra um meio de se livrar, reúne um grupo de militares e vai para o quartel da polícia, onde trava um tiroteio e o retoma, prendendo os rebeldes.
Voltando ao Karnak, onde foi pequena a resistência, reassume seu posto, restabelece a ordem e instaura sindicância, para punir os culpados. Dentro de poucos dias, o Desembargador é considerado culpado e vai preso, respondendo processo.

Logo no início da revolução, Vaz da Costa faz nomear prefeito de São João seu sogro José Torquato, que morava na fazenda Alegre. Com o desfecho da briga do Tenente Landri, não era concebível sua permanência no cargo, oferecido então a Raimundo Pereira de Sousa, que se tornou conhecido do Interventor Landri pelos bons serviços prestados na aplicação dos recursos vindos para socorrer os flagelados da seca de 32. Nomeado, tomou posse no segundo semestre de 1932.



[1] O Governador deposto era João de Deus Pires Leal – nota da organizadora (Ismênia Reis)

domingo, 2 de março de 2014

Padre Jerônimo e o Carnaval



O Padre Jerônimo assumiu a paróquia em 1936 de São João do Piauí, em substituição ao alemão Padre Francisco. Congregado da ordem dos Mercedários, de origem espanhola, radicado há anos em São Raimundo Nonato, era um homem culto e de muita autoridade, com admirável capacidade de trabalho, dedicado ao pastoreio das almas. Enfrentava as dificuldades com desembaraço e desenvoltura. 

Nesse tempo não havia confissão comunitária. Assentando num confessionário, atendia aos penitentes o dia todo e entrava noite adentro, enquanto houvesse gente na fila, Montado a cavalo, atendia aos chamados para lugares mais distantes com o objetivo de assistir a um moribundo, na esperança de dar-lhe um passaporte para a eternidade. Sua ordem religiosa condicionava voto de pobreza, de modo que repassava para a então prelazia de São Raimundo Nonato tudo que ganhava do seu estafante trabalho como vigário, que era afanoso, pois passava meses a fio em desobriga a percorrer a cavalo toda extensão territorial da paróquia.

Padre Jerônimo dava tudo de si para os paroquianos, mas cobrava reciprocidade em favor de Deus, com dedicação e intransigência. Na ocasião dos festejos religiosos e dos dias de desobriga pelo interior, não tolerava festas profanas, tentando derribar os costumes tão tradicionais de toda a região. Nas fazendas foi fácil controlar os fiéis, sempre atenciosos e obedientes ao vigário, mas nos povoados enfrentou dificuldades irreversíveis, tendo, algumas vezes, de suspender a desobriga e viajar antes de terminá-la.

Na cidade a convivência foi sempre meio tumultuada, mas as famílias encontravam meios diplomáticos para superar as crises. A dificuldade maior estava entre as zeladoras do Apostolado da Oração, das quais exigia que controlassem os filhos para não promoverem nem frequentarem bailes por ocasião das novenas. Umas se rebelaram logo, como foi o caso de D. Anoca Fialho; outras contemporizavam diplomaticamente, de que foi exemplo D. Maria Leodônia:  dar a Deus o que for de Deus e a César o que for de César, conforme o ensinamento de Cristo.


A briga maior do vigário era contra os foliões do carnaval, que considerava festa de Satanás. Nesse particular foi completamente vitorioso. Ameaçava negar as cinzas da quarta-feita a quem desobedecesse a sua recomendação, mantendo a cidade sob controle, exceção de Camilo Amorim, que reunia meia dúzia de rebelados e desfilava pelas ruas durante os três dias de folia ao som de sua famosa orquestra de pau e corda, desafiando as iras dos céus, que chegavam na terra pela boca do vigário.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Depois da Luta que não houve: o medo

Depois do episódio da luta que não houve e da informação de que os revoltosos regressaram de Simplício Mendes, a calmaria voltou a São João, que retomou à normalidade da vida.

Aconteceu, porém, um fato que não estava na previsão do povo do interior, que vivia isolado dos grandes centros, dada a ausência de comunicação. Como a revolução fora programada, deflagrada e conduzida pela oficialidade do exército, os seus colegas de farda que não aderiram ao movimento se esquivaram de participar da luta. Assim o governo ficou sem tropas para fazer a repressão pela vastidão do território nacional. Nessa emergência, recorreu aos governos estaduais, que jogaram as polícias na perseguição aos revoltosos. Como o número de policiais era pequeno, as forças policiais abriram-se ao voluntariado. Para facilitar o alistamento, criaram-se postos de recrutamento nos municípios, confiados a oficiais, cujas patentes eram concedidas de acordo com as informações políticas.

Assim apareceram como oficiais da polícia, de uma hora pra outra, os Leão de São Pedro, os Ferreira e os Rubens de São Raimundo Nonato e outros figurões do Piauí. Na Bahia os mais famosos eram os Franco e os Leobas, e, no Ceará, Virgulino Ferreira Lampião, com a patente de capitão. Como os governos não tinham dinheiro para cobrir as despesas decorrentes, deram-lhes o direito de fazer requisições de tudo que carecessem para organizar seus batalhões, como sejam animais, mercadorias, cereais e tudo que estivesse à vista. Armados com esses poderes, os novos oficiais recrutavam suas tropas, que viajavam por onde melhor lhes conviesse, com o objetivo de capturar revoltosos. Nesse particular, os líderes que fizeram a revolução conseguiam, em parte, dentro da sua visão, aquilo que desejavam: a desordem nacional.

Em São João do Piauí passaram várias tropas, que demoravam pouco, em face da informação de que os revoltosos haviam desistido de vir a nossa cidade, Não me consta que tenham feito desmandos, além de pegar cavalos, bois e bodes, por onde iam passando. Os próprios chefes locais se identificavam com eles e prometiam colaboração, na qualidade de representantes do governo do Estado. Como não podiam protestar, diziam que estavam de acordo e mantinham a convivência pacífica.

Acontece que chegou de surpresa um capitão, cujo nome não recordo, vindo de São Raimundo Nonato, na chefia de um grande contingente. Acampou com sua tropa nos subúrbios e declarou que trazia instruções de permanecer, para defender a cidade da invasão dos revoltosos. Em vão os chefes e pessoas graduadas tentaram convencê-lo de que as tropas de Carlos Prestes haviam regressado de Simplício Mendes, de modo que se tornava inútil sua permanência. “Ordem é ordem, e será cumprida”, retrucou o capitão. A cidade se apavorou, com justos temores da jagunçada, e voltou a insistir, indagando qual seria a garantia para a manutenção da ordem. O capitão respondeu que sua tropa era constituída de jagunços e, para ser franco, não mereciam confiança, porque não tinha força para contê-los.

Depois do medo, que era contagiante, veio o pânico generalizado, que determinou a fuga em massa para onde fosse possível. Os locais preferidos eram o interior do município. Quem não tinha terra ou moradia disponíveis pedia emprestado ao amigo ou vizinho, que cedia de boa vontade, dentro do espírito humano de solidariedade.


Em pouco tempo a cidade estava vazia, apenas com três moradores: O Padre José Maria Leau, franco-alemão, Agio Rosado e Josefa Maria de Sousa, vulgo Zefinha Gambá. Os comerciantes fecharam as lojas e carregaram as mercadorias. Esse vazio durou alguns meses, com o retorno paulatino dos moradores.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Coluna Prestes: ou Luta que não Aconteceu

A campanha sucessória federal nos idos de 1926 foi tumultuada, porque as forças armadas, notadamente o exército, não se conformaram com a escolha do candidato oficial, o mineiro Artur Bernardes, para Presidente da República.

Depois de eleito e empossado, não faltavam focos de insurreição dentro da oficialidade, até que estourou um grande movimento que envolvia os militares do sul do país, sob o comando do General Isidoro Lopes.

Derrotados nos primeiros embates pelas forças legalistas, os revoltosos organizaram forças expedicionárias para percorrer o interior, com vistas a perturbar o bom funcionamento do governo. A mais importante foi a coluna Prestes, chefiada pelo tenente Luís Carlos Prestes, que depois ficou famoso no mundo inteiro pela atuação no Partido Comunista no Brasil.

Partindo de Porto Alegre com seus companheiros, montados em cavalo, Carlos Prestes percorreu todo o território nacional até o extremo norte, quando se homiziou na Bolívia. Seu braço direito no norte era o tenente Juarez Távora, natural do Ceará. Chegando às imediações de Teresina, o tenente Juarez Távora foi preso e recolhido ao quartel da guarnição federal, o 25 BC. Carlos Prestes, entretanto, lutou com toda a bravura; vencedor ou derrotado nas batalhas, nunca foi preso. No Piauí ele esteve em Uruçuí, Amarante, Oeiras e Floriano, bem como Picos, para citar as cidades mais próximas de nós. Ao chegar a uma cidade, seu alvo principal era a repartição do telégrafo, para transmitir as notícias a seu gosto. Em Simplício Mendes, Prestes não passou, mas enquanto estava em Oeiras, mandou um grupo de revoltosos visitar essa cidade.

É nesse particular que São João entra na história da revolução, uma vez que veio a notícia de que São João era o alvo imediato dos revoltosos. Ao ter conhecimento da presença dos revoltosos em Simplício Mendes, nossa cidade se alvoroçou e entrou em pânico. Apesar da divergência, os Costa, Paulo e os Carvalho uniram-se na defesa da cidade, no sentido de organizar a resistência.

Os cidadãos de maior respeito e responsabilidade ficaram com a incumbência de organizar grupos armados para enfrentar os revoltosos na estrada que demandava a cidade de Simplício Mendes. Foram montados três piquetes: um na estrada principal da Lagoa da Serra, próximo à lagoa do Marmeleiro; outro na Salgada; e o terceiro na Vila Foca. Não sei de quantos combatentes se compunha cada grupo, nem os nomes de todos os capitães. Só me recordo que o primeiro deles foi confiado ao capitão da Guarda Nacional Pedro Paulo Alves, conhecido pela coragem e valentia. A cidade ficou em angustiosa expectativa, com a recomendação de os moradores se trancarem dentro das casas nas primeiras horas da noite.

Logo no primeiro dia, altas horas da noite, uns viajantes desavisados vinham conversando em voz alta, na direção do piquete do Capitão Pedro Paulo. Interpelados, não estacaram, porque ignoravam o estado belicoso em que se encontravam. O Capitão não teve alternativa e mandou bala, que vomitava dos rifles dos seus comandados. Os outros combatentes dos piquetes vizinhos, assustados e desorientados, mandaram fogo também. Ao ouvir o tiroteio a cidade ficou alvoroçada, na convicção de que a luta estava travada nas três frentes, e os santos ficaram sem tempo de atender tanta reza, até que chegou um aviso, restabelecendo o equívoco.


Final do episódio: os revoltosos não vieram a São João, regressando de Simplício Mendes, mas a história da revolução de 26 envolvendo São João não esbarrara aí.

Década de 20 - Continuação

Como consequência dessa briga política, a cidade era dividida em duas sociedades. Um grupo não comparecia a festas promovidas pelo adversário. Até dentro da Igreja, nas novenas e nas missas, havia o lado dos Carvalho e o dos Paulo com os Costa, Duas bandas de música bem equipadas e instrumentadas existiam na cidade, uma de cada partido, para suas promoções e as festas sociais.

Dois acontecimentos de destaque ocorreram na segunda metade da década: a eleição de João Santos para Intendente e a de Manoel Clementino de Carvalho para deputado estadual. Um terceiro acontecimento em 1928 foi a nomeação do juiz Joaquim Vaz da Costa para desembargador do Tribunal de Justiça em Teresina. Enquanto os dois primeiros resultaram no fortalecimento dos Carvalho, o terceiro enfraqueceu os Costa e Paulo, que perderam a voz de comando desassombrada do Juiz, ficando na condição de órfãos.

João Santos fez uma administração operosa. Construiu o açougue municipal, cujo prédio ainda existe, e a estrada carroçável para Simplício Mendes. Mas sua grande realização foi na educação, pela modernização do ensino. Criou a escola Pedro Borges, com equipamentos e materiais os mais modernos até então existentes; trouxe uma professora normalista de fora, competente e dedicada, Honorina Neiva Bezerra, a quem deu muito apoio.

O major Honório continuava no comando da política, sem contestação, até que em 1930 a Revolução vitoriosa de Getúlio Vargas trouxe o objetivo, que cumpriu em parte, de derribar todas as oligarquias existentes, destituindo os caciques. Honório Francisco dos Santos caiu no ostracismo e no esquecimento. Sem recursos, sem aposentadoria, pai de numerosa família, morreu cego e pobre no dia 2 de outubro de 1942, deixando um nome ilustre na nossa história e um exemplo digno de ser imitado.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

São João do Piauí - Década de 20



Nascido na fazenda Zimbro, cheguei a São João no ano de 1920, em companhia de minha família, com a idade de quatro anos. A primeira escola que frequentei foi a do tenente Antônio Cavalcante, quando completei seis anos.

A cidade só tinha uma escola pública, ocupada por D. Genésia Arrais. As famílias não acreditavam no ensino público, preferindo as escolas particulares, que eram quatro: do tenente Antônio Cavalcante, de D. Laura Carvalho, de Teodoro Feliciano e de Nesinho da Felisbela. O único auxiliar que possuíam era a palmatória. Nessa época se acreditava que o entendimento entrava na cabeça do aluno pelo castigo, sendo a palmatória o mais preferido.

A fonte principal da nossa economia era a borracha, extraída da maniçoba, arbusto nativo, em abundância em todas as chapadas do extenso município. O município foi habitado, cresceu e se desenvolveu por conta dessa atividade lucrativa, que atraiu trabalhadores, comerciantes e aventureiros dos municípios e estados vizinhos. Nessa leva de migrantes vieram homens e mulheres, a maioria com interesse de ganhar boa vida, outros foragidos da justiça de suas terras e alguns homens de bem, na intenção de crescer e prosperar.
Entre os últimos, chegou à cidade, no dia 3 de outubro de 1880, vindo de Casa Nova (Bahia), o jovem Honório Francisco dos Santos, que abriu casa comercial e se identificou com a comunidade. Ingressou na política, foi eleito intendente e tornou-se poderoso chefe, major da guarda nacional. Destemido e corajoso, enfrentou os adversários, que tinham como chefe principal o Dr. Joaquim Vaz da Costa, Promotor Público e depois Juiz de Direito da Comarca.

Os partidos políticos não tinham nomes, sendo identificados pelos das famílias dominantes, De um lado os Carvalho, do outro os Costa aliados dos Paulo, não só rivais, mas inimigos radicais.
Para sustentação da política, o Dr. Vaz da Costa criou um jornal, a Voz do Sertão, impresso na tipografia que trouxe de Teresina. O alvo principal era o major Honório, barreira intransponível dos adversários e detentor da confiança dos amigos.


Houve um episódio perigoso, que custou caro ao major Honório. Entre os migrantes, chegou um senhor Teófilo, com fama de valentão, que se localizou na região de Boa Esperança e se encostou em Dr. Vaz da Costa. Teófilo gostava de provocar o major Honório. Certa vez, passou em frente à casa do major, que estava sentado à porta, e levantou o paletó, para exibir o revólver. Repetiu o gesto duas vezes, Então o major o acompanhou, sem ser visto, na direção do prédio da cadeia, onde estava um soldado montando guarda. Com um aceno do major, o soldado atravessou na frente do Teófilo e deu-lhe voz de prisão. Quando este reagiu, o major estava com um revólver futucando-lhe as costas. Teófilo, meio acovardado, implorou: “Não me desmoralizem”. O major retrucou: “Quem não pode ficar desmoralizado é a autoridade. O lugar de bandido é na cadeia”.

Os amigos do Juiz mandaram buscá-lo na fazenda. Chegando à cidade, concedeu habeas corpus, regressando Teófilo a sua casa, prometendo vingança, sem imaginar que providência maior o aguardava. Na estrada, caiu em um piquete, onde recebeu alguns tiros e embarcou para o outro mundo.
Foi uma agitação generalizada, com acusações ao major e ameaças à sua pessoa. O Juiz abriu processo e decretou prisão preventiva, resultando na saída do major para a cidade de Casa Nova, onde passou uma temporada, enquanto derribava o processo no Tribunal de Justiça.

De outra feita, quando estava na sua fazenda Caché, o Dr. Vaz da Costa foi vítima de um atentado, dentro do seu dormitório, com vários disparos, que felizmente não o atingiram. Num caso e no outro, nunca se encontrou uma prova de autoria, circunstância que pouco interessava, pois os adversários só queriam bombardear o major Honório, que era o grande sustentáculo da política dos Carvalho, com voz de comando e decisão, sem vacilação.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

São João do Piauí - Origem



Igreja Matriz de São João Batista (S.João do Piauí)


São João do Piauí é um município sem história escrita. Todo mundo sabe que nascemos e nos criamos sob o domínio da economia gerada e desenvolvida dentro dos currais e nos campos de pastoreio dos rebanhos bovinos, inicialmente, e depois dos caprinos e ovinos. As histórias contadas e cantadas pelos vaqueiros fazem parte do nosso folclore, chegadas até nós pela tradição oral, muitas vezes entoadas pelas amas, embalando as crianças nas redes de dormir.


Foi assim mesmo, nosso município apareceu despertado pelo mugido dos bois, que foram confiscados aos padres jesuítas, com suas fazendas situadas às margens do rio Piauí, que de um e do outro lado eram constituídas de campinas repletas de capim mimoso, que se transformava em carne depois de assimilado pelo gado. Não havia cercados para prender a gadeira, que era criada às soltas, como se fosse nômade. As fazendas Boqueirão, Fazenda Grande, Canavieira, Espinhos, Salinas, Cachoeira e Gameleira, nos confins das nossas terras, eram cheias de gado pé duro. Remédios, vacinas, veterinário para quê? O gado nascia e se criava sadio pelas leis da natureza, dispensando cuidados técnicos. Seus guias e domadores eram os vaqueiros, montados em cavalos adestrados.

Nos sertões, sem estradas de penetração, nas matas habitadas por onças bravias e valentes, como se operou a ocupação? Como foram desbravadas e ocupadas as terras dos nossos chapadões, sem rios, sem brejos, nem olhos d’água? Perguntamos agora e pouca gente sabe responder.

Foi uma espécie de gente denodada e corajosa, que enfrentava a cobra, o mosquito, a mutuca e a onça preta ou pintada, armada de espingarda, foice e facão, conduzindo um ferro pequeno, chamado lega (assim mesmo: “léga”) à procura de maniçobeira nativa, de onde extraía o precioso e valioso látex, que se transformava em borracha, vendida para o exterior. Os maniçobeiros embrenhavam-se na mata aos bandos, por medida de proteção recíproca. Dividiam-se durante o dia, mas de noite juntavam-se no lugar da dormida, no centro da mata, ao redor de uma fogueira. A onça, que os espreitava, esbarrava a certa distância com medo dos inimigos mais numerosos; se avançasse, seria morta.

Os maniçobeiros desbravaram e ocuparam os lugares mais distantes, não apenas de São João do Piauí, como dos municípios vizinhos. Instalaram fazendas e povoações que prosperaram à força e por conta da economia da borracha. As cidades de Simplício Mendes, Canto do Buriti, Socorro do Piauí, Paes Landim, João Costa, Pedro Laurentino, Nova Santa Rita e Campo Alegre tiveram por início os barracões dos maniçobeiros, que ali faziam o ponto de encontro para venda da borracha e relacionamento social nos fins de semana. Ao fim dos dias de domingo, os desbravadores voltavam aos centros da chapada, para reiniciar as tarefas na segunda-feira, com toda precariedade, devido à falta d’água e de mantimentos. Trabalhavam seminus: sem camisa, com um toco de calça, à guisa de calção. O banho era tomado apenas ao sair da mata, em m de semana, quando a bebida franca e a comida farta compensavam os maus tratos da semana, reconfortados pelo gordo dinheiro que embolsavam.

Foi a comercialização da borracha que pesou na fixação de nossa feira semanal para o dia de segunda. Os maniçobeiros entregavam nos barracões, aos sábados, a borracha extraída e preparada durante a semana, que depois era transportada em jumentos para a cidade. Os tropeiros levavam todo o dia de domingo na viagem, para vendê-las aos comerciantes na segunda-feira.

Depois que passou o período da borracha, várias tentativas já foram feitas para mudar esse dia da feira para o sábado, mas todas elas frustradas, valendo as raízes da tradição.

Essa economia da borracha foi o principal incentivo do comércio de São João do Piauí, até o ano de 1950. O período de maior movimentação foi o da grande guerra mundial, que eclodiu em 1939, quando a Alemanha sustentou uma luta de cinco anos contra o resto do mundo. Na segunda metade da guerra, o Japão entrou ao lado da Alemanha e ocupou as terras que produziam borracha na Ásia, condição que deixou os aliados em muita dificuldade. Então, a salvação estava nos seringais da Amazônia e nos maniçobais do Piauí.

Organizou-se assim a chamada frente da produção para abastecer os aliados de borracha, sem a qual a guerra não poderia continuar. Eu pessoalmente tenho uma recordação muito grande daqueles tempos, porque a firma comercial do meu pai, da qual eu fazia parte (Pedro Laurentino & Filho) era a maior produtora de borracha. No último ano da guerra, nós embarcamos 40.000 quilos de maniçoba. O transporte era feito em costas de jumento até Petrolina, atravessava o rio São Francisco em barcas e seguia de trem até Salvador pela estrada Leste Brasileiro. Com os mares cheios de submarinos inimigos, não era aconselhável o transporte marítimo para tão preciosa carga. Para completar a viagem, entravam em ação os grandes aviões americanos, em voos diretos de Salvador para Nova York.

Nesse período da borracha não havia desemprego em nossa terra. Quem não trabalhava nas matas se ocupava nos  transportes, nos barracões e nos armazéns dos comerciantes. Até o jumento era valorizado pelo serviço que prestava. Era uma paisagem bucólica: a Praça Noé Carvalho vivia cheia de jumentos, descarregando e carregando borracha e mercadorias, nesse vai-e-vem quotidiano do nosso comércio, que era o maior da região. Não havia presença do poder público. Tudo era por conta da iniciativa privada. O estado e o município só apareciam para cobrar impostos. Também, que beleza: não havia corrupção. Essa palavra só existia nos dicionários.

Outra interrogação é oportuna por curiosidade. Se a terra era despovoada, de onde veio essa gente destemida e decidida prestar tantos e tão relevantes serviços a esta região estranha?

As minas de ouro e outros metais preciosos constituíram por este Brasil afora forte motivação para as bandeiras, que partiam de São Paulo e penetravam terras desconhecidas e distantes, Através delas foram povoados muito territórios dos sertões, onde conviviam os índios e as feras.

No nosso caso, os exploradores da borracha vieram dos estados vizinhos, especialmente da Bahia e de Pernambuco, inicialmente, e mais tarde dos municípios de Picos e Paulistana, para citar os mais próximos.

O município de São João do Piauí, no início do seu nascimento, recebeu sangue novo, vindo da cidade e do município de Riacho de Casa Nova, do Estado da Bahia. No último quarto do século XIX, emigraram pessoas de várias condições sociais, sobretudo do sexo masculino, atraídas pela notícia do ganho fácil, que proporcionaria melhores condições de vida. Não há registro na história oral da vinda de casais, nessa aventura de viajar para terras desconhecidas e distantes. As famílias dificilmente se arriscam nesse passe meio misterioso. Os solteiros é que se lançam nas aventuras, arriscando o futuro.

Entre os migrantes destacaram-se alguns nos diversos ramos de atividades, sendo o mais famoso Honório Francisco dos Santos, que se casou duas vezes, por motivo de viuvez, e deixou uma prole numerosa. Foi agraciado com a patente de major da Guarda Nacional e passou a ser conhecido, dentro e fora do município, por major Honório. Ingressou na política, elegendo-se Intendente Municipal por dois mandatos, e assumiu de fato e de direito a chefia do partido dos Carvalho até o ano de 1930, quando foi destituído e levado ao ostracismo pela vitoriosa revolução de Getúlio Vargas. Morreu em avançada idade, cego e pobre.

Residência do Major Honório - Foto Publicada por Honório Filho


Outro menos ilustre, mas com alguma notoriedade, foi José Torquato, que se localizou na fazenda Alegre, onde mantinha grande lavoura, dedicando-se também à extração da borracha de maniçoba, bem como à criação de gado. Casou uma filha com o promotor, depois Juiz e mais tarde desembargador Joaquim Vaz da Costa, que ganhou, pelo conceito, conhecimento e prestigio, o cargo de Prefeito do Município, após a revolução de 30.

José Martins Estrela veio de visita e gostou da terra, aqui ficando até morrer. Sua atividade foi o comércio de tecido e gado. Cresceu tanto e com tamanha rapidez, que se tornou o homem mais rico da região. Fazia compras na cidade de Salvador e despachava viajantes para revenda no sul do Piauí e no interior de Goiás, De volta, seus agentes traziam muitas boiadas, que ele engordava e repassava para outros centros consumidores.

José Martins casou-se com Jesuína Ferreira de Carvalho, da família mais importante do município, filha de José Ferreira de Carvalho. Construiu para morar um sobrado, com dois pavimentos, no alto da Santa Fé, à semelhança dos castelos medievais. Depois da morte do casal, esse luxuoso edifício ficou inicialmente desocupado e depois abandonado sem os cuidados necessários. Em 1935 um herdeiro o vendeu por preço irrisório a Simplício Carvalho, que o demoliu para vender o material a quem interessasse. José Martins e Jesuína não tiveram filhos, sendo seu rico patrimônio herdado pelos sobrinhos da mulher.

A terra que constitui o patrimônio do município de São João do Piauí, onde fica localizada a cidade, foi doada por ele. No seu testamento, doou para a Diocese do Piauí as terras que compõem a data Fazenda-Grande, com todos os pertences, inclusive a sua casa de residência, com a condição de instalar um colégio, destinado à educação da juventude. O Bispo de Teresina, D. Otaviano, desistiu da dádiva por falta de condições materiais de cumprir a vontade do testador. O testamento e a desistência estão registrados no cartório do lº Oficio de São João do Piauí.

Para se ter uma ideia da grandeza do patrimônio de José Martins Estrela, pertenciam-lhe as datas Fazenda-Grande, Canavieira e Espinhos, todas povoadas de gado. Essas fazendas pertenceram aos jesuítas, foram confiscadas pela Coroa Portuguesa e depois arrematadas por ele ao governo do Brasil.